Texto publicado originalmente no Jornal Público
Ao Presidente da República, Marcelo Rebelo de Sousa,
Ao Primeiro Ministro, António Costa,
Ao Presidente da Assembleia da República, Augusto Santos Silva,
Ao Ministro da Infraestruturas e da Habitação, Pedro Nuno Santos,
À secretária de Estado da Habitação, Marina Gonçalves,
À Ministra do Trabalho, Solidariedade e Segurança Social, Ana Mendes Godinho,
O Direito à Habitação é a porta de entrada para muitos outros direitos essenciais como a saúde, a educação, a cultura, o lazer e o trabalho e por isso não queremos palavras ou promessas, queremos acções!
Os despejos continuam no Bairro da Quinta do Griné, em Aveiro, no Lumiar, em Lisboa, e a demolição de habitações, sem uma alternativa estável para os moradores, aconteceu em setembro no Talude, em Loures, e voltou a acontecer esta semana no Torrão, em Almada.
Motivadas por estes e por muitos outros casos, realizaram-se duas assembleias, uma no Porto e outra em Lisboa, com o mote ‘Quem não tem casa, não tem culpa’. Nestas assembleias reunimo-nos em torno de um problema comum: a falta de acesso a uma habitação digna. Esta carta aberta, redigida pelos moradores em situação de despejo em conjunto com várias associações, pretende dar voz a quem é sistemicamente invisibilizado.
No momento em que partilhamos esta carta, as famílias do Torrão vêem as suas casas ser demolidas sem uma solução digna e estável à vista; no Griné, famílias inteiras com crianças são notificadas informalmente do despejo, sem direito a defesa, sem existirem soluções habitacionais dignas, como a lei prevê, dado tratar-se de habitação pública.
A decisão que tomamos de ocupar ou de viver numa casa que coloca a nossa própria existência em risco é o sinal mais evidente da impossibilidade de aceder a uma habitação digna. Perante estas dificuldades e demasiados anos de espera nas listas para uma habitação pública, muitas famílias vêem-se cada vez mais incapazes de pagar uma casa no mercado. As casas que ocupamos estavam vazias há anos! Foram recuperadas às nossas custas, na esperança de ter um tecto digno para as nossas famílias.
As demolições e despejos, violentos e ilegais, levados a cabo pelo Estado por todo o país, estão a deixar centenas de pessoas sem casa e sem uma alternativa estável. Ao mesmo tempo, o poder público reafirma que a Habitação tem prioridade máxima. Poderia a contradição ser mais clara?
Unimo-nos porque acreditamos que este problema tem de ser encarado colectivamente e porque acreditamos que há casas para todos! A nossa luta é a mesma dos que estão à espera de uma casa, dos que deixaram de conseguir pagar a renda, dos que vivem em condições de insalubridade ou sobrelotação e dos que gastam uma parte demasiado grande do rendimento para ter um tecto. Percebemos que não é um problema individual e que só construindo as reivindicações em conjunto podemos lutar pelo acesso a uma casa digna.
Exigimos soluções! Exigimos o cumprimento do direito à habitação! Por isso reivindicamos:
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Fim dos despejos de habitações públicas e regularização das situações das famílias que ocuparam!
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Fim dos despejos sem uma alternativa habitacional digna!
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Nem casa sem gente nem gente sem casa! Existem em Portugal mais de 700 mil alojamentos vazios, metade está em bom estado de conservação. Como podemos aceitar que existam pessoas em situação de sem abrigo, em pensões e alojamentos temporários, em sobrelotação ou longe dos seus empregos e redes de apoio?
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Aumento do parque habitacional público! Se o financiamento do PRR é a fundo perdido, qual é a desculpa dos municípios para não aumentarem a sua oferta para as famílias mais vulnerabilizadas?
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Fim das rendas especulativas de mercado e da “renda acessível”! Uma casa é um direito e a renda deve ser calculada em função dos rendimentos das famílias - que sentido faz gastarmos um terço do nosso rendimento para ter um tecto?
A democracia tem de ser responsável por quem está mais vulnerável e, se a Constituição vigora, o dever dos Governos e da sociedade é cumpri-la diariamente. Mas o sistema que temos cobra demasiado a quem nada tem e é cada vez mais claro: o direito à habitação é apenas para quem tem capacidade financeira de o garantir.
Apesar de consagrado na Constituição Portuguesa há 46 anos e, recentemente, reiterado na Lei de Bases da Habitação, o Direito à Habitação não está a ser cumprido e o agravamento da crise é notícia cada vez mais recorrente em jornais e telejornais. A escala do problema é nacional. Em 2020, 8 mil pessoas moravam na rua - números que se agravaram com a pandemia e com os problemas económicos actuais. Hoje sabemos que serão mais de 100 mil as famílias a precisar de uma solução habitacional, com base nos levantamentos das Estratégias Locais de Habitação.
Desde 2010, o preço de venda das habitações cresceu 80%, e desde 2017, as rendas dos novos contratos de arrendamento subiram, em média, 38%. Em contrapartida, os rendimentos das famílias não aumentaram o suficiente para fazer face às despesas básicas e o parque habitacional público representa apenas 2%, não estando planeado o seu aumento para as famílias com maiores carências.
Multiplicam-se as casas vazias, os anos de espera por uma casa pública, os valores das casas no mercado, e as desculpas do Estado para continuar sem cumprir um dos direitos fundamentais à dignidade humana!
Entre casas vazias e famílias sem casa, é visível a tomada de posição do Estado: é preferível despejar!
Os despejos das habitações públicas contradizem a narrativa do governo. O não cumprimento da lei na execução dos processos é flagrante, e o não cumprimento de direitos humanos, também. Os programas postos em prática em nada vêm ajudar as famílias mais pobres. Perguntamos: como é possível estudar, trabalhar e ter saúde, quando não se tem uma habitação digna?
Defendemos que quem ocupa não tem culpa e que não está a incorrer contra o património público, pelo contrário, está pela primeira vez em muitos anos a dar-lhe um uso e a fazer cumprir a sua função social, consagrada na Lei de Bases da Habitação!
Moradores em situação de despejo no Bairro da Quinta do Griné, Aveiro
Moradores em situação de despejo no Torrão, Almada
Moradores em situação de despejo no Talude, Loures
Moradores em situação de despejo no Lumiar, Lisboa
Moradores em situação de despejo no Bairro Cabo Mor, Vila Nova de Gaia
Habitação Hoje
Associação Habita
STOP Despejos
Canto do Curió, Associação Cultural